Imagine, de uma hora pra outra, você parar totalmente de emitir sons. Imagine gritar, ou mesmo tossir e espirrar, sem ninguém te ouvir. Como se alguém tivesse apertado o botão de mudo que controla o seu corpo. Agora imagine isso afetando uma pessoa que não tem movimentos para provocar qualquer tipo de barulho, como bater palmas ou apertar uma campainha. Foi isso que aconteceu comigo em junho de 2012, no dia que foi feita a traqueostomia. Nossa, o começo deste artigo ficou muito dramático, mas calma, pois vou contar como fomos driblando as dificuldades e descobrindo formas alternativas para me comunicar.
O momento que acordei da anestesia foi apavorante, pois instintivamente eu falei com quem estava na UTI comigo, mas não saiu a minha voz. Felizmente um minuto depois meu pai percebeu que eu abri os olhos e veio falar comigo. De cara surgiram dois grandes dilemas: como chamar as pessoas principalmente à noite, e como falar ou expressar minhas necessidades. As primeiras semanas foram complicadas tentando encontrar uma forma de chamar usando algum mínimo movimento que me restava nas mãos ou nas pernas, mas não deu certo e minha mãe teve a ideia de regular algum alarme do respirador para eu conseguir chamar. A fisioterapeuta Mariana configurou o alarme de alta frequência um pouco acima do que eu estava fazendo e, ao forçar um pouco a respiração, o alarme acionou. Deu certo!
Na época que fiz a traqueostomia, eu já contava com o leitor óptico há um ano. Então durante o dia era tranquilo chamar e me comunicar, como eu explico no artigo O papel fundamental da tecnologia na minha vida. Mas eu não passo 24 horas na frente do computador, já que eu também durmo, tomo banho, escovo os dentes, faço fisioterapia, assisto filmes, entre outras coisas. Além disso, se pensar em outras pessoas que tem ELA, nem todo mundo sabe mexer no computador ou tem condições de adquirir um leitor óptico. Por isso, é fundamental contar com uma tabela de comunicação e sinais para se expressar.
A tabela eu também já havia criado por necessidade para uma situação específica, já que minha voz ficava cada vez mais fraca e difícil de entender. Em novembro de 2011 iria acontecer o casamento do meu amigo de faculdade, Thiago Triani, com a Carol Anjos. Eu sabia que seria impossível falar com as pessoas, até mesmo com a minha irmã, durante a festa, por causa do barulho. Precisava descobrir uma solução. Eu havia visto no Youtube um vídeo que mostrava uma menina se comunicando com a mãe, portadora de ELA, por meio de uma tabela, que continha as letras do alfabeto. Aquela seria uma boa alternativa. Mostrei o vídeo para minha mãe e tivemos a ideia de separar as vogais, que são bastante usadas. Criei no computador uma tabela de comunicação com sete linhas numeradas, contendo todas as letras do alfabeto e os números de 0 a 9. A estreia foi justamente no casamento e, apesar de algumas trapalhadas de primeira vez, funcionou direitinho. Com o tempo, fui aperfeiçoando o método, acrescentando palavras, e criei também uma segunda tabela, com comandos, partes do corpo e uma lógica, que mostro abaixo em um recado que imprimi pra minha equipe na época. As tabelas são impressas e plastificadas, para durar mais, e estão penduradas na parede como um quadro, presente da minha querida amiga Bel, fundadora do Lar Casa Bela.
Aprender a se comunicar com as minhas tabelas é fundamental para os profissionais de saúde que cuidam de mim regularmente, e uma das minhas principais particularidades para quem vem treinar pela primeira vez. Muitas vezes as tabelas de comunicação assustam os novos profissionais, e a técnica de enfermagem Bianca, que cobre folgas, já falou brincando que é “mais fácil aprender japonês em braile”, lembrando a música “Se”, do Djavan, mas no geral as pessoas aprendem rápido. O vídeo dirigido pelo Pedro Urizzi para a Revista Trip, me mostra falando na Tabela 1. Toda a equipe de enfermagem que trabalha aqui fixo ou cobrindo folgas já decorou, até mesmo a Karol, que entrou há pouco tempo.
Nos primeiros anos, quem melhor falava comigo na tabela era a fisioterapeuta Mariana Polita, que me atendia diariamente. Conversávamos sobre tudo durante a sessão de uns 50 minutos. Ela me perguntava quem mais falava bem e, na época, eu dizia com os olhos as pessoas em ordem, como se fosse um ranking. Atualmente, quem mais domina a arte de se comunicar comigo na tabela é outra fisioterapeuta, a Gabi, que me atende desde 2016. O marido dela Caio, que virou meu amigo, fica impressionado com a quantidade de assuntos que conversamos e com o tanto de coisas que eu conto pela tabela em um único atendimento, quando Gabi chega em casa contando pra ele. As técnicas de enfermagem Leiliane e Ana Isabel, que cuidam de mim há 12 anos, também falam super-rápido, e reclamam que eu não levanto sobrancelha como nos primeiros anos. É verdade. Além dos profissionais de saúde, foram “alfabetizados” na tabela meus pais, minha namorada, minha irmã Lili e minha prima Flávia.
Minhas tabelas de comunicação até já ganharam um prêmio. A empresa Dal Ben, que foi responsável pelo meu home care entre 2012 e 2023, inscreveu as tabelas que eu elaborei no Quali Hosp (Congresso Internacional de Qualidade em Serviços e Sistemas de Saúde) da Fundação Getúlio Vargas. O trabalho foi premiado na categoria Comunicação em Saúde. O valor do prêmio, foi doado ao Mobilize Brasil e a dona da empresa, Dra. Luiza Dal Ben, veio na minha casa pessoalmente entregar o prêmio.
Muitas pessoas perguntam por que eu não patenteio as tabelas, mas nunca passou pela cabeça ganhar dinheiro com elas. Ao contrário, fico feliz em disponibilizar para quem quiser utilizar ou adaptar meu arquivo para a necessidade de cada um. Existem diferentes pessoas com ELA que usam minhas tabelas, inclusive a amiga Beth Ribeiro, presidente do Instituto Mara Gabrilli. Não sou só eu que criei formas de me comunicar. A placa de comunicação desenvolvida para o Marcelo Farinelli, diagnosticado há 20 anos, se difundiu entre pessoas com ELA. Chamada Faritable, é bem elaborada, feita com acrílico transparente, e tem até manual de instruções.
Não sei se vocês já assistiram o filme O Escafandro e a Borboleta, de 2007, ou leram o livro com o mesmo título, publicado dez anos antes. Conta a história do francês Jean-Dominique Bauby, que era editor-chefe da revista Elle e sofreu um derrame devastador, paralisando seu corpo inteiro, com exceção do olho esquerdo, sem afetar sua consciência e suas memórias. Depois do trágico acidente vascular, ele passou a piscar uma vez para dizer sim e duas vezes para dizer não. Além disso, elaboraram uma tabela de comunicação com as letras do alfabeto ordenadas de acordo com a frequência de uso no idioma francês. Ele ditando textos com os olhos para as terapeutas e parentes é muito parecido comigo conversando com a minha família e as pessoas que cuidam de mim. Quem convive comigo e assistir o filme agora, vai notar a enorme semelhança.
O Escafandro e a Borboleta mostra que Jean-Dominique passou a piscar uma vez para dizer sim e duas vezes para dizer não. Já eu faço diferente: quando eu levanto sobrancelha significa sim, quando eu fecho os olhos significa não. Eu também tenho outros sinais e comandos de comunicação não verbal que explico no artigo “Quem vê cara, não vê coração”. No filme, os pensamentos do personagem são revelados por uma voz, inclusive nos momentos em que ele perde a paciência com alguém. Meus amigos, imaginando que eu devo passar raiva algumas horas, falam brincando que eu deveria criar uma terceira tabela apenas com palavrões e xingamentos, algo que obviamente eu não fiz. Quando estamos juntos e alguém faz uma piada sem graça ou não entende o que eu quero dizer, um deles logo fala: “Tabela 3”. Brincadeiras a parte, o mais importante é que, apesar de ter perdido os movimentos e a voz, eu não perdi a capacidade de falar, opinar, me expressar e compartilhar histórias como essa com vocês.
Respostas de 2
Que texto gostoso de ler
Parabéns
Muito inteligente !!
Incrível. Obrigada por compartilhar.