Por causa da ELA, diagnosticada há mais de 15 anos, fui gradativamente perdendo praticamente todos os movimentos do corpo, mas não absolutamente tudo. Neste artigo vou contar o que ainda consigo mexer. Depois adoraria comentários das pessoas em geral e relatos de quem enfrenta situações semelhantes. Eu consigo mexer levemente as duas coxas, que minhas fisioterapeutas chamam de quadríceps, e o braço direito, além do dedo médio, também do lado direito.
É no rosto que estão os meus maiores movimentos, mas também algo que me incomoda muito e logo vou dizer. Para escrever com os olhos, por meio do leitor óptico, consigo mexer perfeitamente os olhos, assim como piscar e levantar um pouco a sobrancelha. E para quem acha que eu praticamente não tenho nenhuma força física, recomendo não colocar o dedo dentro da minha boca que sou capaz de arrancá-lo com minha mordida, certeza o movimento mais forte que eu tenho atualmente. Se para fechar a boca minha força é grande, não posso dizer o mesmo na hora de abrir, que depende muito da posição da cabeça. Eu também consigo mexer os lábios e um pouquinho da língua.
Como os músculos faciais foram menos afetados que os do corpo desde sempre, fui criando diferentes sinais usando os movimentos da face para facilitar a comunicação. Por exemplo, quando eu levanto sobrancelha significa sim, e quando eu fecho os olhos significa não. Meu pai diz que eu funciono em sistema binário, tendo só duas respostas possíveis de bate pronto. A boca eu fico mexendo no momento que peço para aspirar a saliva. Eu também a uso quando preciso avisar que estou com vontade de urinar, ao subocar a palavra xixi. Agora falei bonito, ein? Segundo o dicionário, subocar significa “gesticular com a boca, cantar sem usar a voz, imitar com a boca, dublar”. Os sinais facilitam e agilizam a minha comunicação com as pessoas, mas também podem gerar um pouco de confusão. A Bianca, que cobre folgas da equipe de enfermagem há anos, quando não entende o que quero, canta um trecho da música do Djavan que diz “Teus sinais me confundem da cabeça aos pés”.
Outra coisa que eu estabeleci é que uso o olhar para apontar para o que quero. Dessa forma, se eu olho para quem está cuidando de mim e na sequência olho para a janela, quero que abra ou que feche. A pessoa pergunta as diferentes possibilidades, e vou respondendo com o sistema binário. A mesma técnica é usada quando olho para o ventilador, luz, porta, tv, ou para alguém que esteja passando. Não só para enxergar e para apontar que eu uso os olhos, pois como perdi os movimentos, meu olhar diz muito, pelo menos para quem me conhece bem. Muitos anos atrás, uma técnica de enfermagem fez algo que eu não gostei e eu joguei aquele olhar fuzilante de reprovação. Ela logo falou que se lembrou da música Tiro ao Álvaro, do Adoniran Barbosa. Eu entrei na brincadeira e coloquei a música para tocar, nós dois rimos juntos no trecho que coloco abaixo:
Teu olhar mata mais do que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano
Teu olhar mata mais que atropelamento de automóver
Mata mais que bala de revórver
Apesar do meu rosto conter os músculos mais preservados do corpo, são somente alguns deles que se mantém com força. A maioria dos músculos foi bastante afetada pelos quinze anos da ELA, que é uma doença progressiva, inclusive os músculos da bochecha. Como consequência, perdi muito da expressão facial. Eu só me dei conta disso um dia que eu estava em um ambiente com espelho. Uma hora eu estava rindo muito, praticamente gargalhando, mas quando olhei meu reflexo, parecia que eu estava P da vida. Isso sim me incomoda, pois não consigo transmitir minha verdadeira personalidade. Sou feliz, de bem com a vida, mas pela falta de movimentos aparento ser sério, quase carrancudo.
Quem convive comigo direto diz que sou muito expressivo e consegue notar as mudanças sutis na minha feição para saber se estou rindo ou não, mas mesmo a técnica de enfermagem Elisângela, que cuida de mim há oito anos, entre idas e vindas, muitas vezes acha que estou bravo, quando apenas estou concentrado em algo. Quando eu era adolescente, passou uma novela dos ciganos Igor e Dara. Era os primórdios da internet e acho que criaram o primeiro meme da história: diversas fotos idênticas do cigano Igor, mas cada uma com um dizer diferente, do tipo Igor feliz, Igor triste, Igor dizendo: eu te amo. Era uma brincadeira criticando a atuação do ator, insinuando que ele era inexpressivo e não conseguia demonstrar sentimentos. Na época eu ri bastante, mexendo normalmente vários músculos do meu rosto, mas atualmente eu acho que estou cada vez mais parecido com aquele meme, tendo praticamente a mesma cara para expressar sentimentos opostos.
Quem leu até aqui, provavelmente já sacou a razão da escolha do título deste artigo. Como dizem: quem vê cara, não vê coração. No meu caso, também não vê o sorriso.