Muitas das dúvidas que as pessoas têm sobre pacientes de esclerose lateral amiotrófica (ELA) são relacionadas aos sentidos. Perguntas frequentes que minha família e a equipe de enfermagem ouvem quando estão na rua comigo são: Ele escuta? Ele come? Se eu pegar na mão, ele vai sentir? Uau, que incrível, como ele consegue escrever com os olhos? Mesmo quem me conhece há décadas tem curiosidade para saber como meus sentidos foram afetados, me perguntando se sinto cheiro, se perdi o paladar, se sinto fome, se enxergo bem etc. Agora vou responder essas questões e muitas outras. Eu convido os leitores a comentarem e outras pessoas com ELA contarem como os sentidos foram impactados pela patologia.
De cara eu posso afirmar que, no meu caso e em muitos pacientes, a ELA em si não afeta os sentidos, mas a perda de movimentos e os dispositivos que passamos a usar quando a doença evolui, como gastrostomia e traqueostomia, podem afetar, e muito. Vou falar sobre como os cinco sentidos do corpo humano – paladar, olfato, visão, tato, e audição – foram impactados em mim nestes 16 anos com esclerose lateral amiotrófica. Os sentidos são fundamentais para interagirmos com o mundo e com as pessoas. Embora há quem defenda que prazer, dor, desejo, equilíbrio, tempo, e direção também sejam sentidos do corpo humano, aqui vou focar nos 5 principais.
Paladar
Três anos após o diagnóstico eu já estava engasgando frequentemente e com muita dificuldade para comer. Em novembro de 2011 fiz uma gastrostomia, ou simplesmente gastro, que é um furo no estômago para que o alimento entre diretamente por ele, por meio de uma sonda e equipamentos como frasco de dieta e equipo. Com isso, a comida não passava mais pela boca e não precisava ser mastigada nem deglutida, movimentos que já estavam sendo bastante afetados pela ELA naquele momento. O alimento também não passava mais pela língua, onde temos o paladar e sentimos o gosto dele. Nos meses seguintes à colocação da gastro, mesmo recebendo todo o sustento e nutrientes necessários diretamente por ela, eu segui comendo por simples prazer de sentir os gostos e sabores. Para não correr o risco de engasgar, precisava ser um alimento bem pastoso, como sopa, algum creme ou fruta amassada com mel. Na época eu também continuava bebendo pela boca, usando um canudo. Mas em junho de 2012 tive complicações depois de um procedimento médico, parei totalmente de engolir e precisei fazer uma traqueostomia. Nunca mais consegui comer ou beber nada pela boca. Atualmente o principal gosto que sinto é do enxaguante bucal.
Comer é uma atividade que envolve muitos sentidos. Eu não sinto fome de dieta industrializada, até já aconteceu de tomar uma dieta de manhã, sair de casa, não me alimentar o dia inteiro, e nem perceber. Curioso para alguém que, antes do diagnóstico, sentia uma fome danada 11h45, ficando desesperado para almoçar, mesmo tendo tomado um café da manhã mega reforçado. Atualmente eu não sinto nenhuma fome, principalmente quando estou isolado no meu quarto trabalhando. E você, se toda refeição fosse obrigado a comer algo completamente sem gosto e sem cheiro, sentiria a mesma fome que sente por uma boa comida? Se as técnicas de enfermagem não colocam a dieta pela gastro eu nem percebo, mas ver os outros comerem dá uma vontade absurda. Quando alguém pergunta se fico incomodado de ver ele comendo, respondo: claro que não. Não é porque eu não consigo comer, que vou ficar incomodado que os outros comam na minha frente. Seria muito egoísmo.
Atualmente o que mais sinto vontade de comer é queijo derretido, seja numa pizza, lasanha ou sanduiche. Sofro quando assisto a propaganda de uma marca de queijo conhecida. Eu também sinto falta de um bom café-da-manhã com granola e frutas. No segundo ano da doença, fiquei uns 40 dias internado e não aguentava mais aquela comida sem sal e sem gosto do hospital. Daí minha mãe pediu pra madrinha Magaly, que cozinha muito bem e é sócia do restaurante Villas Erich, levar algo saboroso pra mim. Ela, que me conhece bem, fez, entre outras coisas, um creme de espinafre temperado e suculento, que dá saudades até hoje. Curioso que eu não sinto nenhuma vontade de tomar cerveja, algo que sempre fazia antes. Uma vez, em casa com meus amigos, colocamos vinho diluído na água pela gastro, foi uma sensação gostosa.
No meu caso, como não sinto fome sabendo que um alimento sem gosto nem cheiro vai entrar diretamente no meu estômago, percebi que a fome tinha muito mais a ver com o hábito, os sentidos, a prática de esportes e, por que não, pelo prazer, do que por uma necessidade fisiológica. Isso certamente porque eu nunca passei fome de verdade. Carolina Maria de Jesus, em seu livro Quarto de Despejo, disse que as coisas todas do mundo – o céu, as árvores, as pessoas, os bichos – ficavam amarelas quando a fome atingia o limite do suportável. Ela certamente teria uma outra percepção sobre a fome, mas como eu nunca passei por isso, sinto vontade se vejo uma comida gostosa, já que a lembrança de todos os sabores ainda está na minha mente. A minha sorte é não sentir o cheiro daquela comida saborosa atualmente, como explico a seguir, ao falar sobre outro sentido.
Olfato
Eu não perdi o olfato, mas desde que parei de respirar pelo nariz, não sinto cheiros. Aconteceu de um instante para o outro, no momento que foi feita a traqueostomia. Acordei da anestesia assim. O sentido segue funcionando perfeitamente, mas o ar não passa mais por ele, já que a cânula da traqueostomia possui um sistema de vedação, chamado cuff, que bloqueia a passagem de ar. Isso facilita a minha respiração, pois encurta o caminho percorrido pelo ar do pulmão até meu respirador. Se estou num lugar aberto e está ventando, os odores do local chegam até mim, mesmo que fraco. Tive esta ótima sensação quando retornei ao sitio do tio Fábio, em Aguaí. Ainda não fiz o experimento, mas se alguém posicionar um ventilador virado para meu nariz e borrifar um perfume no caminho entre nós dois, eu com certeza vou sentir.
Há vantagens em não sentir cheiros, como comentei antes. Seria mais difícil ficar quase 13 anos sem comer absolutamente nada se estivesse frequentemente sentindo aquele aroma gostoso de uma boa comida. Além disso, eu não sei se quem está falando comigo tem bafo, se alguém soltou gases, ou se minha namorada tem chulé (Amor, depois me conta). O melhor de tudo foi ter acabado totalmente minha rinite alérgica. Por outro lado, também existem desvantagens. Meu pai começou a cozinhar depois que se aposentou, há poucos anos. Vira e mexe as técnicas de enfermagem fazem comentários do tipo: Nossa, a comida do Dr. Márcio está tão cheirosa. Até hoje eu não senti o aroma e não provei da comida do meu pai, e nem sinto a fragrância do perfume da minha namorada quando entra no quarto, só quando me abraça. Eu venho melhorando constantemente da parte respiratória e tenho esperança de, no futuro, ficar períodos sem o ventilador mecânico, mas ainda não consigo virar pra ela e cantar aquela música da Banda Eva que diz: “Quando você passaeu sinto o seu cheiro.”
Visão
A visão foi o sentido que mais ganhou novos significados depois do diagnóstico, já que passei a usar os olhos não só para enxergar, mas também para mexer no computador por meio do leitor óptico, fazer sinais e principalmente me comunicar. Por isso, eu falo brincando que, quando alguém tampa meus olhos, eu fico cego e mudo ao mesmo tempo. Apesar da visão ter adquirido superpoderes, nem tudo tem sido mil maravilhas. Antes eu tinha uma vista perfeita, mas ganhei uma miopia e fiquei muito mais sensível à claridade, deixando meu rosto com cara de quem comeu e não gostou, mesmo estando muito feliz, como explico no artigo “Quem vê cara, não vê coração”. Como o rosto foi mais afetado do lado direito, muitas vezes não consigo abrir o olho direito inteiro. Com isso, passei a ter um lado preferido para aparecer em fotos, o esquerdo, e tenho usado frequentemente óculos escuros. Além disso, o fato de não conseguir virar a cabeça dificulta enxergar o que não está na minha frente. Resumindo, a visão me permite comunicar e usar o computador, mas já não posso lançar o meu olhar 43, aquele assim, meio de lado já saindo, indo embora, louco por você. Que pena!
Tato
Eu não perdi o tato e muito menos a sensibilidade da pele em todas as partes do corpo. Mesmo sem olhar, posso falar com precisão em qual lugar do meu corpo pousou um pernilongo ou pingou uma gota d’água. Por outro lado, como perdi os movimentos, não consigo, de forma espontânea, levantar os braços para abraçar alguém, apalpar alguma coisa, ou fazer o movimento de pinça, um dos principais fatores que diferencia o ser humano dos demais animais, como explica o brilhante documentário curta metragem Ilha das Flores, do diretor Jorge Furtado. Muita gente pergunta se eu sinto as coisas. Sim, tanto um beliscão como um carinho ou uma queimadura e lágrima escorrendo, sinto tudo normalmente. Eu prefiro um carinho, um cafuné ou uma bela coçada nas costas.
Audição
O único sentido que não foi afetado pelas consequências da ELA ou pelos equipamentos da ELA foi a audição. Assim como 17 anos atrás, sigo escutando o mundo, as pessoas e muita música, como essa do Moraes Moreira, que diz:
“Escute essa canção
Que é pra tocar no rádio
No rádio do seu coração
Você me sintoniza
E a gente então se liga
Nessa estação”
Respostas de 19
Ricky seu depoimento é antes de mais nada uma belíssima lição de vida. Quanta coragem, resignação, exemplo e sobretudo o bom uso dessa inteligência brilhante que Deus lhe deu. Muito orgulho de ser sua prima! Um beijo carinhoso !
Oi Ricky, muito esclarecedor seus relatos. Obrigada por compartilhar!! Você eh um exemplo!! Te admiro muito!!
Amei o texto, nunca tinha pensado nisso.
Querido primo, você é definitivamente um dos maiores guerreiros pela vida que já conheci. Continue na batalha pois as tecnologias médicas un dia vão chegar para reverter toda essa doença. Um grande abraço a você e toda família.
Do primo Cacá e família.
Simplesmente maravilhosa suas narrativas, realmente temos muitas curiosidade a respeito de como vivem as pessoas com ELA, claro que cada caso tem suas peculiaridades. Aprendi um pouquinho mais sobre você, sou muito grata e feliz por conhecer você. Obrigada por todos os ensinamentos de vida, e também sua ajuda para melhorar o mundo. Bjsss
Ricky gostei mto de saber sobre tudo isso,as vezes ficamos com receio de perguntar e acabar sendo invasivos mesmo tendo uma certa intimidade.
Mas o seu humor é demais,esse lado eu não conhecia, faz com que tudo fique mais leve e acolhedor.
Estou devendo uma visita com o meu pequeno,te chamarei para marcar assim que as festas passarem.
Se a gente não se falar,desejo ótimas festas para vc e sua família,que 2025 venham mais novidades,avanços,amor e mtas alegrias.
Bjss
Lindo Ricky. Você é uma pessoa especial que Deus deixou no mundo para mostrar como a vida é uma coisa louca. Te amo muito primo querido, e estarei sempre junto a você para o que precisar e eu puder te ajudar. Um grande beijo no seu coração.
Ricky, você é um cara muito especial. Cada palavra sua é um convite para reflexão. Te adoro!
Ricky obrigado por relatar essas informações mais precisamente sobre a ELA, e de uma forma bem esclarecedora, estou estudando e terminando graduação em fisioterapia quando puder manda sua experiência como funciona sua rotina principalmente na questão do tratamento com a fisioterapia. Obrigado ☺️
Meu caro Ricky, mais uma das inúmeras contribuições; muito grato, mesmo! Nosso querido amigo comum, o Nelson Avella, vai apreciar muito, também, estou certo. Abraço afetuoso!
Caro Ricky, mais uma das inúmeras contribuições, importantes e necessárias que você faz. Nosso amigo comum Nelson Avella irá gostar também, estou certo! Abraço afetuoso!
Oi, Ricky! Muito interessante seus relatos, pois muita coisa gostaria de saber e você explicou. Te sigo desde que você foi num programa da Globo há algum tempo e, ali comecei a te admirar. O meu pensamento, na hora, foi como um cara sem mobilidade, está se preocupando com a mobilidade alheia. Você é realmente uma pessoa incrível! Parabéns, felicidades, saúde e que você tenha um Natal muito feliz ao lado dos familiares e amigos. Feliz Ano Novo!
Oi Ricky, conheço sua história desde 2011, foi a época que eu prestava cuidados a uma paciente na qual tinha a mesma profissional na época que tbm te atendia. Carinhosamente elas me falava de vc. Desde então eu te admirava pela sua força e por nunca desistir. Eu queria te dizer que acompanhei 2 pacientes com ELA até o fim. Infelizmente não tiveram a chance de alcançar a tecnologia e eu ficava imaginando essas dúvidas que vc relatou. Obrigada por compartilhar, como profissional pra mim isso significa muito. Bjs
Mais um texto incrível!!
A forma como você aborda uma “carga” tão pesada com tanta leveza e melodia é realmente admirável. Beijo grande.
Sempre tive curiosidade sobre muitas questoes esclarecidas no seu texto, que a proposito esta lindamente escrito. Agradeco pelo humor, leveza e inspiracao que voce consegue trazer para todos.
Ricky do céu! Escrevendo desde 2020 para um jornal, eu nunca tinha pensado em abordar esse tema. E olha que por muitas vezes faltaram assuntos. E incrível a forma clara e assertiva como você descreveu os nossos cinco sentidos. Canso de ouvir, quando saio, minha cuidadora dizer pras pessoas que podem fazer a pergunta pra mim. Aí elas falam que não pensavam que eu ouvia. Ou perguntam pra mim se eu sinto, beliscando minha panturrilha na cama. E eu respondo que até sinto o suficiente para fazer sexo. O olfato que perdemos, mas em algumas ocasiões sentimos, como o cheiro da minha rua quando saio pra passear…Eu ainda consigo tomar sorvete, pois tenho poucos movimentos de língua que sobraram, mas tenho vontade de algumas coisas, às vezes, mesmo não sentindo fome. A visão enfraqueceu muito. Não enxergo de perto. Acho que vou imprimir seu texto e levar quando for sair. Parabens!
Ricky, obrigada, mais um aprendizado para mim e certamente para muitos: temos sempre motivos de Gratidão, não sabemos valorizar nem pequenas muito menos grandes coisas que temos, como nossos 5 sentidos perfeitos e completos, pernas e braços para poder correr e abraçar quanto e quando temos vontade, achamos tudo isso “obrigação da natureza” ….
Ricky que legal que sua madrinha é do Villas Erich. Sempre frequentei muito este restaurante com meus pais, cresci na Zona Sul e sou alemã.
Obrigada por mais um aprendizado através da sua superação, te admiro e te desejo o melhor de TODO CORAÇÃO. Abraço aos seus pais e familiares e namorada.
Rick, obrigada por compartilhar.
Como o simples é importante, como sentir é importante
Obrigada por isso
Te admiro muito
Super abraço e boas festas
Magnífico sentir o toque e saber atrás da pele vc sente o amor e carinho! E tbme ouvir tudo que a vida pode te contar! Vc e espetacular!!!! Continue nos contanto e taonbom aprender com vc!