Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver
Ficar 5 anos sem sair de casa é muito tempo, mas já aconteceu comigo. Por isso este trecho da música do Cartola que coloquei acima teve grande significado pra mim. A música se chama “Preciso me Encontrar” e, de fato, eu me encontrei. Eu parei de sair de casa por alguns motivos depois que foi feita a traqueostomia. A partir desse episódio, eu precisava aspirar a tráqueo de tempo em tempo e parei totalmente de conseguir engolir a saliva. Com isso, eu passei a precisar de equipamentos de saúde, como aspirador e respirador, que funcionam com tomada, o que tornou mais difícil andar de carro. Além disso, ficou cada vez mais complicado usar uma cadeira de rodas comum, por eu já ter perdido todos os movimentos do corpo, inclusive o controle do tronco. Antes mesmo da tráqueo já estava difícil sair, e eu só insistia nisso porque sou teimoso e porque o Alex Sandro, que faz todo tipo de adaptação a pessoas com deficiência, colocou apoio de cabeça e cinto de segurança na minha cadeira de rodas. Mas depois da tráqueo e dos novos equipamentos elétricos, me dei por vencido.
Como eu não queria ficar só na cama, o Alex Sandro elaborou uma cadeira de rodas grande, robusta, que inclinava as costas e foi feita sob medida pra mim. Com ela eu pelo menos podia circular pela casa, e tornou possível eu estar presente no casamento da minha irmã Lili, que só aconteceu em casa para que eu pudesse participar. Durante 5 anos, eu só saí de casa três vezes, todas de ambulância. Duas vezes foram para o hospital, mas a terceira foi muito especial: o estádio de futebol do glorioso Corinthians em um jogo da Copa do Mundo. Foi necessário montar um super esquema, envolvendo a equipe médica da arena, uma empresa de ambulância, e até a FIFA, para eu ir até lá. Um ano e meio depois da Copa, cheguei a planejar outra saída, também de ambulância, mas eu tinha piorado bastante e não conseguia mais ficar sentado numa cadeira sem sentir muito desconforto respiratório. Infelizmente não foi possível mais esta aventura. Será que eu nunca mais sairia de casa? Isso me fez lembrar da música Roda Viva, do Chico Buarque.
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu…
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá …
Sair de casa passou a ser um sonho distante e eu achava que nunca mais iria acontecer, mas um belo dia, minha mãe, vasculhando a internet, descobriu uma casa de pessoas com ELA nos Estados Unidos onde os pacientes usavam uma cadeira de rodas motorizada e circulavam pela cidade. Pesquisamos mais sobre a cadeira e ela realmente parecia atender às minhas necessidades, até porque o encosto dela abaixa praticamente todo, fundamental em caso de dificuldade para respirar. Parecia perfeita, mas tinha um grande problema: era absurdamente cara. Na hora escrevi para os meus amigos e eles, sempre empolgados, fizeram uma campanha de arrecadação (crowdfunding), a boa e velha vaquinha, para comprar a cadeira. Foi emocionante ver a quantidade de gente disposta a me ajudar. Passados 11 dias e 250 doações, atingimos o objetivo. Encomendamos a cadeira e compramos um aspirador que funciona com bateria. Em poucos meses, já estava eu motorizado circulando pelas ruas da cidade, girando a roda da minha vida por caminhos jamais desbravados.
A cadeira Permobil F3 chegou no dia do meu aniversário. No começo andamos apenas perto de casa, até para sentir se eu iria me sentir bem, ou ficar com dores. No geral deu tudo certo, eu estava vivendo um sonho. Após um período de adaptação, decidimos fazer um passeio além da vizinhança e nos deparamos com a primeira dificuldade de ter uma cadeira de rodas motorizada. Ela é grande e, sozinha, pesa 200 kg, então não teria como ser transportada em um carro comum. E como eu só conseguia respirar bem deitado, nem algumas vans geralmente usadas como veículos adaptados serviam. Com isso, eu não encontrei nenhum táxi acessível que atendesse às minhas necessidades. Buscando na internet, descobri a Azul Locadora, especializada neste tipo de serviços que tinha várias vans adaptadas e motoristas bem treinados para o transporte de pessoas com deficiência. Por ter perdido os músculos do pescoço, na primeira saída a minha cabeça ficou quicando igual uma bola de basquete. Na segunda vez já providenciamos uma faixa para prendê-la no apoio da cadeira motorizada. Podíamos usar por um período de 12 horas, dentro da região metropolitana de São Paulo. O serviço era ótimo, mas eu saía apenas uma vez por mês, já que o valor era alto, a não ser nas vezes que empresas pagaram para eu ministrar palestra. De qualquer forma, essa foi a solução que possibilitou minhas saídas de casa durante quase dois anos. Mas se eu quisesse alçar voos mais altos, precisávamos encontrar uma solução definitiva.
Após muita procura, conseguimos adquirir a única van adaptada possível para transportar a minha cadeira que não precisasse de habilitação profissional: uma Mercedes Vito. Como a importação desse modelo iria se descontinuar no Brasil, conseguimos comprar a do teste drive da própria Mercedes Benz. Quem a encontrou foi o Ivan Tamburi, marido da Paula Monteiro, que trabalha no Mobilize e na comunicação do livro Movido pela Mente. Aguardamos ansiosamente a chegada da van, após a empresa Italmobility fazer algumas adaptações e a instalação de duas baterias, inversores e tomadas 110V para o respirador e aspirador elétrico. Tivemos que aprender a embarcar e desembarcar com segurança, descobrindo as melhores rotinas para cada novo procedimento. Meu amigo Lê fez até um manual. Começamos a fazer passeios curtos, a fim de nos familiarizarmos com a nova forma de dirigir mais atenta às curvas e lombadas para minimizar os impactos no meu corpo, mas com o tempo passamos a sair com frequência e até fazer viagens. Daí sim eu passei a valorizar um asfalto de qualidade para não ficar chacoalhando o tempo todo. Pra mim, a ligação de 10 km entre minha cidade e São Paulo, capital, não é uma rodovia, mas sim um tobogã.
A cadeira motorizada mudou incrivelmente a minha vida para melhor, mas com ela eu enfrento obstáculos bem maiores que com a cadeira de rodas comum. Seu peso inviabiliza subir qualquer degrau, ou guia que não seja rebaixada, pois é impossível empiná-la como uma cadeira de rodas leve. Temos três rampas móveis de diferentes tamanhos em casa, mas são super pesadas. São raríssimos os lugares que eu posso circular pela calçada. Antes de ir a qualquer local, preciso que alguém filme o acesso com antecedência para verificar se eu posso ir. Nem São Paulo, a cidade mais rica do país, está preparada. Eu também andei de metrô com a cadeira Permobil e funcionou bem, mas já tive que desistir dessa opção quando meu destino final era próximo de uma estação cujo elevador estava quebrado. Os funcionários do metrô são treinados a conduzirem uma cadeira na escada rolante, mas não uma motorizada. Nos primeiros anos da doença, quando eu usava uma cadeira de rodas simples, andei com ela diversas vezes em escada rolante, tanto no metrô como em outros lugares, e até no Cristo Redentor do Rio de Janeiro. Hoje não posso mais fazer isso. Eu também nunca mais tive coragem de andar de ônibus, com medo de enguiçar a plataforma do veículo por causa do peso.
Eu sou muito satisfeito com a cadeira motorizada Permobil F3, principalmente agora que contamos com uma van adaptada adequada e tenho um apartamento na região da Paulista, que tem boa acessibilidade e consigo fazer tudo andando, ou melhor, rodando, sem depender de carro. Afinal, a Permobil proporcionou uma completa guinada na minha vida para melhor. Por causa dela hoje eu consigo assistir ao sol nascer, ver as águas dos rios correr, ouvir os pássaros cantar, eu renasci e estou vivendo. Mas se alguém me perguntar se eu recomendo, acho que vou pedir pra pessoa ler este artigo, ponderar os obstáculos e avaliar. O que vocês acham?
OBS.: se quiser saber mais sobre a cadeira de rodas motorizada, eu falo um pouco dela no artigo O papel fundamental da tecnologia na minha vida e conto como bastante detalhes no livro Movido pela Mente.